lá costumava ser uma pizzaria. às vezes, eu passo na frente e penso em como era lá dentro; as lembranças de criança me fazem pensar num palco (era mais algo como um tablado) onde ficavam vários brinquedos e jogos. eu me lembro de jogar mico, aquele jogo de cartas, com outras crianças; um menino muito alto e magro, um menino muito gordo. eu me lembro da pizza que tinha muito queijo mas não tanta calabresa (eu só comia calabresa, naquela época), e lembro que tinha muita cebola. tinha também um — o que é aquilo, um trem? um submarino? tinha algo do outro lado, um algo em que dava para se sentar e fingir que era um trem-ônibus-submarino em missão: um monte de ferro torcido e pintado de cores berrantes para chamar a atenção das crianças. eu me lembro de ir no colégio joão xxiii e ver esse mesmo trem-ônibus-submarino lá,e me perguntar se era o daquela pizzaria que já não existia mais, ou se era da mesma pessoa que tinha feito; o primeiro fazia mais sentido. eu me lembro de sentar e tentar me lembrar de como eu me sentia quando era criança e ia àquela pizzaria, de como era bom, de como era simples fazer amizade com outras crianças quando se brinca, mesmo que elas fossem totais desconhecidas. hoje, esse lugar é um salão de cabeleireiros — talvez um spa, não tenho muita certeza —, mas quando passo pela porta sempre tento me lembrar de como era. quando foi que fechou? quando foi que eu parei de ir lá com a minha família? eram lembranças boas.
ali, um pouco mais longe, era um restaurante. eu não me lembro se servia algum tipo específico de comida (talvez também fosse uma pizzaria? tantos lugares eram pizzarias, até algum tempo atrás), mas me lembro que fui lá com meus pais e os pais daquela menina, a que mentiu pra mim e disse que o sobrenome era potter... ana? carolina? ana carolina? acho que era carol. ela e o irmão dela (ou era primo?), e o lugar tinha aquele jeito de lata de sardinha, o teto meio baixo, um monte de mesas enfiadas e pouco espaço para se mexer. eu me lembro de ter ficado conversando na porta com os dois, que eram da minha idade — carol fazia inglês comigo, e os pais dela trabalhavam com meu pai, se não me engano —, mas não me lembro de muita coisa lá dentro; hoje passei por lá, e agora é um espaço de pilates. eu tento espiar e ver se ainda é o mesmo espaço apertado, de teto baixo, ou se era só coisa da minha imaginação (acho que não era), e se alguém mais se lembra de que lá foi um restaurante, uma vez. se alguém passa por lá e tem lembranças, como eu tenho a desse dia, só desse. não é estranho?
logo acolá é onde morava meu amigo. era perto da minha casa, e das poucas vezes que eu fui lá, eu gostei muito. ele morava no alto, era uma quitinete — só aquele espaço enorme que juntava cozinha, quarto, sala e um banheirinho separado —, e ele me fez amá-lo no primeiro momento em que nos falamos. era engraçado, era espontâneo, me chamou pra casa dele logo de cara (onde já se viu?) e me fazia sentir apreciada; éramos parecidos. hoje, quando eu passo por lá, ainda penso nele e olho para cima; era alto. me faz pensar em saltos e vertigem, me faz pensar no que ele pensou depois, em outro lugar que ficava em outra cidade, quando tudo acabou. eu não sei quem mora lá.
virando à direita e seguindo reto, era a minha escola. foi uma das primeiras, de quando eu tinha quatro anos até ter dez-quase-onze. foi onde fiz amizades que achei que iam continuar pelo resto da vida (ou só não pensei muito a respeito, porque a gente não pensa tanto sobre isso quando se é criança), onde aprendi a ler e a amar ler. o pátio era enorme, as crianças do jardim de infância tinham um parquinho com areia (areia!) e uma casa enorme, vazia. eu sonhava muito com aquele parquinho; tinha um espaço, subindo uma escada, que dava em... nada. tinha só mais areia, mas eu ia lá com minha amiga quando tínhamos o recreio, e ela foi minha primeira amiga, lá; eu me lembro dela, o nome era paula, era branquinha com olhos grandes, um nariz grande e cabelo bem escuro, e outra menina brigou comigo no fim do dia com lágrimas nos olhos porque eu tinha roubado a melhor amiga dela. o nome dessa outra menina era ana paula, e eu não queria roubar a amiga de ninguém. na biblioteca da escola havia duas seções: a de livros infantis e a de livros juvenis e de estudo. foi lá que eu li a maioria dos livros que li na infância, foi lá que eu descobri a coleção do cachorrinho samba (da qual eu nunca me esqueci), era lá que eu passava meus recreios quando não estava brincando com alguém. eu não me lembro bem, mas era comum me encontrar lá, assim como era comum brincar com meus colegas e amigos — eu amava a biblioteca. eu alugava fitas cassete (fitas cassete!), eu alugava livros. foi ali que eu vi um exemplar de harry potter pela primeira vez, mas não era da escola, e sim da minha amiga paula, a primeira que eu fiz na escola. foi do outro lado, onde o acesso era por uma rampa, que eu me propus o desafio de andar grudada na parede de um lado até o outro no prédio, passando pelas voltas e ranhuras — acho até que levei alguém comigo nessa doideira, e eu consegui. foi ali, na parte de esportes, do outro lado da rua, que eu fiz amizade na natação com uma menina que era da minha turma, a letícia, mas não tinha tanta amizade com ela em sala de aula; também foi naquela mata, que ficava atrás de uma das quadras, que eu e o carlos, o menino peruano da minha turma com quem eu fiz amizade, achamos um cacho de bananas verdes e escondemos em uma semana para encontrar o mesmo cacho maduro, na outra. foi ali que eu joguei bete com minhas amigas, foi ali que eu fui pra eventos da escola, que eu fiquei com medo de me ferir nos espinhos, que eu nadei num dia de muita chuva em que a piscina estava quentinha. foi ali a noite do pijama, uma das mais legais. foi no outro quarteirão, do lado da minha casa, que eu colhi amoras e vi coelhos e fiz sanduíches para eles com alface e cenoura e couve e um monte de outras coisas. foi ali que eu fiz amizade com os adultos que cuidavam do lugar, que deviam me achar uma criança meio doidinha, aparecendo ali com tanta frequência. hoje eu sei que é tudo diferente por lá, na escola e na parte de esportes — mudaram o lugar onde ficava a biblioteca, mudaram o lugar onde eu escalava na parede com meus pezinhos, mudaram um monte de coisas. mudaram também o parque ecológico onde eu visitava os coelhos e comia amoras: o lugar foi vendido, e agora é um estacionamento e uma parada de veículos de emergência, como ambulâncias. eu penso em como eu ia lá, às vezes, em como eu via o moço que tomava conta, que me conhecia; como era a árvore que ficava no começo, como a horta era bem-cuidada e seguia, parecendo de jogo, ou de filme. eu sinto falta daquela época, e penso: será que valeu a pena transformar aquele lugar num estacionamento? será que alguém ainda se lembra dos alunos, das folhas, dos peixes, dos sapos, dos coelhos, das crianças, das plantas pra pesquisa de escola, das vezes em que eu ia brincar, de quando era o lugar onde eu ficava feliz?